Jaime Hipólito
Dantas nasceu em Caicó e escolheu Mossoró como sua terra para viver, para
trabalhar, para fazer amizades, e para se apaixonar.
Conseguiu ser ícone
da comunicação em Mossoró no período que vai de 1950 a 1980. Começou no
jornalismo aos 19 anos de idade escrevendo em "A Voz do Estudante",
periódico do Centro Estudantil Mossoroense.
Depois atuou no
rádio-jornalismo dentro do programa "O Prato do Dia" na Rádio Tapuyo.
Em seguida passou a fazer parte do time do jornal O Mossoroense a convite de
Lauro da Escóssia.
Jaime Hipólito
Dantas foi um dos principais nomes do inovador Caderno de Domingo do jornal
Tribuna do Norte no final dos anos 70 e início dos anos 80. No Caderno de
Domingo formava no trio de grandes textos tendo como companheiros Dorian Jorge
Freire e Everaldo Gomes da Porciúncula.
Jaime Hipólito é
autor dos livros "O Aprendiz de Camelô" (1962), "Estórias
Gerais" (1986) e "De Autores e de Livros" (1992). Vítima de
infarto, faleceu no ano de 1993.
Pesquisando,
encontramos em espaço do professor de jornalismo Woden Madruga na Tribuna do
Norte, datado de 29 de setembro deste ano, pedaços do prefácio de Dorian Jorge
Freire para a obra "De autores e de Livros", de Jaime Hipólito
Dantas.
Dorian Jorge
Freire, texto inteligente no jornal e nos livros, palavra inteligente e
improviso fascinante no rádio, fala sobre a competência com as frases e com as
palavras de um dos grandes escritores do Rio Grande do Norte, Jaime Hipólito
Dantas.
“Para que prefaciar livro de Jaime Hipólito Dantas? Para nada... Capricho besta
do escritor. Ou vontade generosa de homenagear o velho amigo menor e em fim de
carreira. Seja qual for o motivo verdadeiro, livro de Jaime não merece a
chateação de um prefácio (...) dispensa as muletas. A apresentação.”
Desde menino, Jaime é assim. Escreve bem e escreve limpo. Seu texto pode ser
admirado por todos. Sua escrita é a última virgem do Brasil. Não lhe foi difícil,
poir ser o maior e melhor do nosso grupo. Sempre. Da formação do grupo até
agora, quando o grupo se desfaz pela morte inapelável de seus membros.
Sempre fui melhor jornalista do que Jaime. Escritor, ele me dá chineladas nos
traseiros. É um prosador brilhante. Eu sou um reles prosador do caos. Daí ter
de confessar aqui (Jaime queria um prefácio ou uma confissão?) minha antiga
inveja de Jaime Hipólito Dantas. Queria escrever como ele. Ler como ele lê.
Saborear com o seu gosto o material lido. Queria ser Jaime numa próxima
encarnação.
Quando recentemente
publiquei meu livrinho “Os Dias de Domingos” e aceitei uma tarde de autógrafos,
caminhei inocente para a revelação final. Escrevera para Jaime e comparecera
àquela tarde de autógrafos para sentir a reação de Jaime. Quando ele elogiou
uma das crônicas, mal sabia que me estava concedendo prêmio Nobel.”
Continuando na pesquisa, chegamos a publicação de crônica de
Dorian Jorge Freire no jornal O Mossoroense
A PALAVRA DE DORIAN
Um retrato de Jaime Hipólito
São Paulo, setembro de 1971
Jaime Hipólito Dantas, promotor público em Mossoró, ex-bolsista no País de
Gales, professor, técnico em contabilidade, antigo dirigente do Centro
Estudantal Mossoroense, antigo diretor do Departamento de Cultura de Mossoró,
autor do livro de contos "O Aprendiz de Camelô", de uma dezena de
ensaios de crítica literária, de contos premiados pela revista A Cigarra e de
poemas não premiados, orador mais para conferencista do que para tribuno,
nasceu em Samos, mas escolheu Atenas para construir seu jardim.
Sobre o seu pensamento, Tito Lucrécio Caro escreveu um poema chamado "Do
Rerum Natura".
Malgrado nascido num lar cristão, no qual o cristianismo é cumprido nos seus
ritos e também na sua essência sobrenatural, Jaime, a pouco e pouco, como
gostava de escrever, foi se distanciando da fé dos seus ancestrais e das lições
diárias de sua mãe Eufrásia.
O cristianismo passou a ser para ele um pensamento respeitável. A fé, um
costume. Tanto que em depoimento recente prestado ao Museu da Imagem e do Som,
informou ser um católico consuetudinário.
Capaz de não perder
as missas aos domingos, não comer carne em dias de preceito, comungar uma vez
por ano e, se insistirem, fazer as nove primeiras sextas-feiras. Mas,
intelectualmente, distante daquilo que nos seus começos possuía um valor
absoluto ou quase: a filosofia integral de Maritain, a pregação lúcida de Alceu
Amoroso Lima, certas páginas de Gustavo Corção, a obra de Bernanos.
O afastamento progressivo da fé (a qual voltará muito cedo) não foi resultado
de uma atitude. Que entre as suas qualidades está a coragem de ser ele. E que,
no fundo, gostaria de ser, ainda hoje, sempre, aquele tímido crente das novenas
e procissões, temente a Deus, cumprindo devotamente o seu dever de louvar o Bendito.
Deu-se que houve tais confusões no mundo, que Jaime, com talento, mas sem tempo
nem vocação para examiná-las, não encontrou alento para alimentar a plantinha
débil, nascida por obra e graça de uma catequese maniqueísta, causadora de
tantos males.
Foi sendo levado por observações menos profundas, terminando por erigir a sua
própria filosofia, de fato não distante do pensamento cirenaico, renovando, no
essencial, a filosofia de Demócrito.
Para ele, o universo é mecanismo, não havendo razão para intervenção de deuses,
mesmo porque não há finalismo.
Jaime tem explicações para cada coisa, "não lhe importa qual das
explicações é a verdadeira; o que lhe importa é saber que há explicações, fazer
compreender que o raio é um fato natural, não uma prova de cólera divina, e
conseguir que o homem viva com calma, sem temer os deuses".
A sua filosofia é moralista. Para Jaime, o bem é o prazer e ele é o único que
deve indicar o que convém e o que desconvém ao homem. Mas que o prazer seja
puro, sem dor, estável, deixe o homem livre. Nada de paixões violentas. O ideal
é o homem sereno, filho da temperança, equilibrado. Homem que a tudo suporta
com bom humor.
A esse pensamento, Jaime alia muitas idéias de Pirro, Timão, Arcesilau e
Carnéades.
Fechado o seu jardim ateniense, empreendeu duas mudanças. Melhor dizendo, três.
A primeira, se não me engano, para as terras do Maranhão. A segunda, algodoais
de Caicó. Finalmente, Mossoró.
Quando chegou ao Alto de São Manuel, para além do Alto, terras conhecidas como
Hipólito, não consta tenha dito vim, vi e venci. Mas, sem empurrões, fez as
três coisas. Com talento quanto graça.
Foi menino pobre, filho de viúva. Menino de inteligência privilegiada, viúva de
coragem admirável. Havia que estudar, mas dinheiro não havia. Toca a bater a
porta do hoje cônego Jorge Paiva O´Grady e pedir bolsa de estudo no colégio da
diocese. O santo padre, que viria a ser depois especialista em discos voadores
e literatura mais ou menos aérea, tinha ar puro de asceta. "Um
santo", diziam. Quase transparente. Diáfano. Com momentos de levitação.
Ouviu a mãe viúva e disse não. O colégio da Igreja não era lugar indicado para
pessoas de pouca ou nenhuma posse. Quem não pode estudar, não estuda.
A viúva não disse palavra. Foi bater noutra porta, a mesma simplicidade, a
mesma dignidade na extrema pobreza. Esta, de um padre não diáfano, longo de
transparência, não aéreo, olhar duro, terra-a-terra, cara de macho, charuto na
boca, mão pequena alisando a barriga enorme. Padre Mota. E a bolsa saiu. E o
menino foi estudar na Escola do Comércio de Alcides Fernandes. À noite, que o
dia era para trabalhar todinho.
Empregado de Manuel Herculano e depois de Enéas Negreiros, fábricas de rede. Já
mais tarde, correspondente comercial de Raimundo Jovino. Depois, Prefeitura
Municipal, jornal O Mossoroense, rádio.
Conheci-o em Enéas Negreiros. Quem diria que aquele empregado de fábrica de
redes era filho de Samos, criador de jardim em Atenas, autor de um pensamento
exposto, nos anos 90, em poema em latim de Lucrécio Caro?
Enéas, diga-se em seu favor, ignorava. Themi também não sabia. Sabiam alguns
meninos, que o que Deus esconde aos sábios revela aos pobrezinhos. Sabíamos eu,
Wilson Lemos, Pedro Batista de Melo, Máximo de Medeiros Filho. Mais um, mais
dois, no máximo três privilegiados outros.
E eu, mais do que os outros, carecia de sua ciência. Enquanto os demais se
bastavam com os contatos domingueiros, esporádicos, ligeiros, na Praça da
Redenção que substituiu o jardim de Atenas, eu carecia ouvi-lo no cotidiano. E
passei a ser o maior ladrão de Enéas Negreiros. Todas as tardes interrompia os
afazeres de seu empregado. O que ouvi dele, então, daria para encher uma
biblioteca. Hoje, a revelação de Carpeaux e de seus ensaios do purgatório.
Amanhã, Álvaro Lins e Alceu Amoroso Lima. Depois, a poesia de Bandeira,
Drummond, Schmidt, Murilo. Pedaços desvairados de Mário de Andrade. As coisas
que lhe contara, também, Belzarte.
Quando menos se esperava, Jaime apareceu doutor de canudo e de anel de rubi. E
de ciência. Provado em terras de Albion. Escrevendo como um mestre, falando que
é uma beleza, sabendo tudo de literatura e arte, múltiplo nos campos da
inteligência.
Entre as coisas, fez política. Ajudando a engrandecer muita gente. Antes,
foi conduzido ao jornal por Lauro Velho, o gato russo. Antes, fez rádio. E
até radionovela.
Deu-se tempo para correr o mundo e conhecer os homens. Foi visto numa praça de
Londres, notado em avenida de Nova Iorque, percebido em bistrô de Paris. Riu e
fez galhofas no Uruguai e faturou o Brasil montado num trem do povo.
Reconheceu, ao fim e ao cabo, que tudo é meros e que há de viver, enquanto a
morte não traz libertação.
E vive. Numa
disponibilidade que espanta e, às vezes, irrita a sensibilidade maviosa de
Elder Heronildes da Silva. Mas que não é outra coisa senão coerência de vida e
filosofia.
Para o meu gosto, ele é uma das cinco pessoas mais importantes da Província. A
primeira de Mossoró. Ao contrário de Rafael, o espanhol, que escreve puto da
vida, o filho de Samos escreve sorrindo. Mofa, pouco caso, sei não. E nunca a
gente sabe o que quer dizer, que uma de suas artes mais finas é deixar o outro
na escuridão, no limbo, incapaz de entendê-lo, de penetrá-lo, de descer ao
abismo de sua sinceridade, descartando tudo que nele é ironia, é sarcasmo, é
mot d´esprit.
Não se compromete tolamente. Não por temer de. Por gastura. Não vale a pena.
Para quê? Se isso não é assim, será de outra forma. As coisas continuarão
iguais, o placar zero a zero, o jogo continuará. Daqui a 200 anos, quem
discutirá a frivolidade de hoje?
Jaime Hipólito Dantas ri e vai pra a praia. Vaqueiro de uma Marília que ele
cantou a vida inteira, numa premonição espantosa. Ri e vai pra a praia. Lá
encontrará a gente de sempre, o mesmo uísque, a mesma conversa, as mesmas
gargalhadas, os mesmos gestos.
E continuará rindo. Lembrando os dias de Samos, as preleções em Atenas, a cara
encerada de padre Jorge, as redes de Enéas, as viagens para Maceió e Natal. E
ri, ri. E às vezes o riso franco cai, fulminante, sobre o cocuruto da gente. Infeliz
de quem não sabe disso...
FONTE – ANOTE RN